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Heitor da Fontoura Porto (* 19/12/1925 + 02/08/2016) |
Por Anna Porto
Publicado na Folha de Candelária do dia 04 de julho de 2014.
“Meu avô hoje é um senhor de 89 anos. Tem a mesma idade que Candelária emancipada. Quando penso em sua trajetória, não deixo de refletir sobre a oportunidade que teve de acompanhar os acontecimentos da cidade. Vislumbro essas suas histórias sendo construídas lado a lado.
Figura reconhecida em sua cidade, Heitor da Fontoura Porto, mais conhecido como Seu Zezinho, me pediu diversas vezes que eu ajudasse a contar sua história. Na tentativa de me encorajar, certa vez mencionou que esteve em sua casa uma jornalista para entrevista-lo sobre sua vida. Retrocedendo um pouco no tempo, me lembro, ainda criança, de sentar em seu colo para ouvir algumas histórias engraçadas e assustadoras ao mesmo tempo sobre as raposas e os graxinins do campo. Lembrando disso, percebo seu gosto por narrativas e penso que talvez eu tenha herdado dele esse gostar. Meu avô agora tem fixação por contar suas próprias vivências para aqueles que ainda estão por vir, sejam ou não de sua família, o conheçam ou não. Quer deixar por escrito suas conquistas no espaço e no tempo. Esse é o seu maior desejo. Então, prometi tentar ajudar.
Hoje talvez as crianças não escutem mais histórias sobre guaxinis. O mundo mudou, a cidade da minha família também e o meu avô acompanhou essas mudanças. Gosto de pensar nele como um homem simples, trabalhador, agricultor que progrediu com força e perseverança.
O início é sempre o mesmo: o casal de vizinhos que gerou meu pai, tornando possível a minha existência. Era uma vez, portanto, um rapaz de origem portuguesa, de olhos azuis, chamado Heitor. Sua vizinha da frente era uma morena bonita de nome Laura Pereira Nunes. Os dois moravam na Vila Fátima, em Candelária, naquele tempo conhecida como Rincão dos Potros. Os dois haviam nascido ali e viviam na mesma comunidade, com os mesmos costumes e, mais tarde, eram da mesma família.
Mas para meu avô a história começava muito antes, desde os tempos em que, para aprender a ler, ele andava cinco quilômetros até a cidade, acompanhado do irmão Cidoca. Os dois de pé no chão, pois era necessário realizar a travessia de arroios. Depois, iam até a casa do tio Antônio Ribeiro, onde eles lavavam os pés, botavam os calçados e iam para a aula. Sua primeira professora foi Edite, uma mulata. Nessa época já tinha 12 anos e seu outro professor, de nome Fábio, dizia nos exames: “Mas rapaz, tu é bem inteligente em geografia, história do Brasil, aritmética, tu tem média muito boa e no resto tu vai de arrasto e essa letra pior no mundo não existe”.
Chegava ao meio dia do grupo escolar e à tarde ia para a lavoura com a mãe Francisca, enquanto o pai, apelidado Caloca, cuidava do armazém, a venda da família. Ajudava também na criação de animais, porcos, galinhas. Conta que aprendeu desde cedo com o pai a trabalhar na terra, lavrar, trabalhar com gado. Essa era sua rotina na época, até que, no quarto ano, seu pai ofereceu estudo para um dos filhos, em Santa Cruz do Sul, no colégio Marista. Foi então que trocou os estudos pela vida interiorana. Decidiu que queria ser um homem do campo, pois era disso que gostava.
E vivia sempre naquela vida campeira, pé descalço, rachado, cheio de tico-tico, exposto ao vento, frio e geada. Aos 16 anos de idade passou a trabalhar como carroceiro ambulante. Comprava arroz nos vizinhos, levava para o engenho do Ledo Ritzel, beneficiava e depois ia vender em outras localidades. Dessa época conta que, durante a guerra, faltou querosene e sal na região, e um lavoureiro, seu Miguel, lhe fez uma proposta: caso conseguisse arranjar uma lata de querosene lhe pagaria 100 mil réis, que era muito dinheiro, já que ela valia de 20 a 30. Então, viajou para Dona Carlota, localidade onde viviam descendentes de alemães e onde havia um grande comércio. Ele chegou com sua carroça, vendeu seis sacos de arroz e sobraram outros dois. Disse então ao dono da venda: “O senhor fica com tudo e eu compro cera, que o senhor tem no armazém”. Vendo três caixas de querosene que estavam em um canto, propôs: “Lhe compro ainda essa querosene”. E assim conseguiu com o dono da venda uma caixa de querosene e seus 100 mil réis por uma lata.
No final da década de 30, já moço, pagava em média dois mil réis para ter uma fitinha posta no peito e entrar nos bailes. Só participava quem era de boa família. Dançava então nos bailes de campanha, que eram evento dos quais se podia participar apenas com convite. Havia um gaiteiro e, de vez, em quando, alguém para tocar violão. Brincavam de polca do Bastão, em que o rapaz que sobrava com o bastão tinha que arrumar uma menina para dançar e deixar o par com o dever de fazer o mesmo. Imagino que tenham sido nessas ocasiões que ele e minha avó, com quem foi casado mais de 60 anos, dançavam. Quando conversamos sobre seu casamento, ele me conta, com os olhos apaixonados, que depois de sair do exército, com 22 anos, casou-se com minha avó, que tinha então 16 anos. Segundo suas palavras, ela teve um papel essencial para fazer dele e de sua vida o que realmente foram. Já casados, foram plantar fumo e começar uma vida de muito trabalho.
Mas na verdade plantar fumo não era o que meu avô queria. Ele ambicionava plantar arroz, e foi o que fez. Durante algum tempo, arrendava terra, pagava porcentagens. Acabou se tornando um trabalhador tão bem sucedido que logo já tinha reunido dinheiro suficiente para comprar seu próprio pedaço de chão. Foi nessa época que um conhecido seu, o Dedé, o levou até Santa Cruz para financiar um motor de puxar água para irrigar a lavoura. No ano seguinte já havia financiado um trator. Se tinha três anos de financiamento, ele quitava no primeiro ano. Seu lema era: sem dívidas; se tem dinheiro, paga.
Mudou-se para Taquari com a família, de camionete, uma Ford 29, e nessa época já tinha um caminhão próprio, que carregou a mudança. Mas nem tudo foi êxito. Morou lá por dois anos e, nesse período, houve uma grande enchente. Conforme relata, “deu uma chuvarada e tapou quase toda a lavoura de arroz”, junto com o trabalho árduo. Nessa situação, o prefeito de Taquari e o banco o ajudaram. Através do seguro, se recuperou como pôde e retornou para sua terra, Candelária. Como saldo dessa experiência, quando olhava para o céu não podia nem ver trovejar.
Voltou a trabalhar nas imediações da Rebentona, construiu um engenho. Nesse galpão de madeira, beneficiava arroz e o levava para a região metropolitana de caminhão para vender. Era ao mesmo tempo agricultor, caminhoneiro e negociante. Já nos anos 60 o engenho ia muito bem e ele recebeu proposta de sociedade por parte do dono da futura rede de supermercados Nacional. No entanto, preferiu emprestar o dinheiro de três cargas de arroz para que o seu amigo comprasse e começasse o seu negócio. Até hoje não se arrepende, afinal seu amor era o campo. Logo após, deixou o engenho nas mãos dos filhos e partiu para a pecuária. Investiu em sua fazenda, fez açudes, a estruturou para continuar plantando arroz, começar com a soja, criar gado e outros animais. “Eu gosto muito daqui, não prefiro essa vida de comerciante, até porque tenho dificuldade de lidar na cidade”, contou-me.
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CITE 59, de 01/10/1981 Heitor de pé, sorrindo |
Por vezes foi confundido e tratado como empregado, mesmo sendo na verdade o patrão. Quando homens “enfatiotados” iam procura-lo para conversar sobre financiamento, lá se encontrava ele, até os joelhos sujos pelo barro, pés descalços, roupas simples, um senhor irreconhecível. E quando lhe perguntavam por que estava lá, enfiado no barro, como um serviçal, respondia: “Tenho que fazer de tudo pela vida”. Lembro-me também da vez em que entrou num banco em Porto Alegre de pés descalços e com roupas simples para retirar uma expressiva quantia em dinheiro, chamando grande atenção. Ou então quando um comprador de arroz chegou e lhe disse para carregar o caminhão e ele, humildemente, obedeceu. O homem depois lhe pediu para acertar com o dono do engenho e meu avô passou pela porta de trás e o recebeu. Sem graça, o homem acabou por descobrir que empregado e patrão ali eram a mesma coisa.
Por essas e por outras mais, acho que meu avô queria passar adiante sua história, como uma lição de vida. Por muito tempo não entendi todo seu legado. Mas agora, escrevendo este texto, compreendo. E gostaria que um dia eu venha a me tornar um pouco como ele. Sem nunca esquecer de quem sou e da terra de onde venho”.
Para mais informações vide postagens anteriores: Vô Zezinho e Vó Laurinha e Eleições em Candelária
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